Por Marcos Troyjo
No maior desfile militar realizado na Praça Vermelha desde os tempos de Staliin, um convidado estrangeiro chamava tanto a atenção quanto o atual inquilino do Kremlin.
Semana passada, ao comandar as comemorações dos 70 anos da vitória naquilo que os russos chamam de "Grande Guerra Patriótica", Putin tinha a seu lado o reluzente presidente chinês Xi Jinping.
O mandatário russo certamente quis que se enxergasse na imagem o símbolo de uma nova ordem mundial "multipolar", onde Moscou e Pequim são protagonistas. No limite, o pensamento estratégico russo continua a supor, à semelhança do período czarista ou mesmo da etapa soviética, que poder (no sentido político-militar) precede e determina a esfera da riqueza e do prestígio.
Os chineses nada têm contra o Kremlin atuar dessa maneira. Pequim vê numa Rússia geopoliticamente forte e ambiciosa mais uma frente com que os EUA precisam preocupar-se e despender extenuante esforço diplomático. Quanto mais sanções Washington e as capitais europeias impuserem a Moscou, mais oportunidades abrem-se para a China no acesso a recursos minerais e energéticos. Além disso, aumenta também a necessidade da China ser consultada prioritariamente pelos russos em qualquer tema da pujante massa territorial da Eurásia.
A diplomacia chinesa ouve com a atenção e até reproduz o conceito de "nova ordem multipolar", tão caro aos russos. Pequim, no entanto, possui sua própria interpretação do que, de um ponto de vista realista e de seu interesse nacional, significa o termo "multipolaridade". A saber, um condomínio global em cujo núcleo, durante algum tempo, EUA e China conviverão como superpotências determinantes -- a primeira, acreditam os chineses, em decadência; a segunda, em ascensão.
Tal percepção, raramente vocalizada pela alta direção em Pequim, mas perceptível nas atitudes e visão de mundo da elite governamental e empresarial chinesa, representa um importante complemento ao planejamento estratégico do país.
Até há pouco tempo, a liderança chinesa tinha um projeto para sua população: a rápida ascensão do PIB per capita mediante um modelo econômico que conjuga ênfase nas exportações e acúmulo de grande estoque de poupança e investimentos.
Apresentava também clara concepção de qual deveria ser o papel das elites: conduzir a ascensão socioeconômica num ambiente de oxigênio democrático rarefeito, mas de vigorosa ênfase na estruturação da capacidade competitiva em termos econômicos, científicos e tecnológicos.
A China igualmente sabia o que queria "do mundo": um panorama global em que o país não precisasse projetar seus valores. Para a China, alguém imitá-la é o mesmo que com ela competir. E, em paralelo, um quadro político-estratégico em que ela não teria de participar de ações militares externas em coalizões pontuais os mesmo sob os capacetes azuis da ONU -- desde que ela própria não fosse territorialmente importunada.
Faltava, assim, o que a China queria "para o mundo". Essa dimensão de como a ordem global deve funcionar passa cada vez mais a integrar a caixa de ferramentas da diplomacia chinesa. Na medida em que os EUA se vêem oscilando entre o "hard power" (sua inegável proeminência militar) e seu "soft power" (seu desgastado discurso em prol de economia de mercado e democracia representativa), os chineses sabem muito bem onde está seu "nicho" na condição de co-integrante do "G2" ao lado dos EUA. Trata-se do "money power".
Putin sabe que, se as portas do Ocidente se fecharem, outras serão abertas por sua parceria com Pequim. A América Latina se consola por ter perdido o boom das commodities para acelerar reformas estruturais competitivas com empréstimos e investimentos chineses. A África supõe que seus imensos desafios de infraestrutura e industrialização podem ser superados com a cooperação chinesa.
A criação de um fundo -- alimentado pelo Banco Industrial e Comercial da China (ICBC) -- com US$ 50 bilhões para investimentos em infraestrutura no Brasil a ser anunciada na visita que o premiê Li Keqiang faz ao país na semana que vem ilustra bem o ponto.
Em resumo, estes são os sinais captados por grande parte do mundo -- à exceção de EUA e Europa -- quando Pequim aumenta seu papel como parceira de comércio, empréstimos e investimentos e acelera a consolidação de novos veículos econômicos como o banco dos BRICS ou as muitas iniciativas de financiamento de infraestrutura na Ásia e na África.
Nesse quadro, a China desde Deng Xiaoping claramente adotou um estratégia "etapista". Antes de ser poderosa militarmente, Pequim buscou construir seu lugar ao sol privilegiando seu arsenal econômico. Os chineses estipularam que a geopolítica deve ser precedida pela geoeconomia. O mesmo se observa na busca de irradiar o prestígio de seus valores ético-políticos.
Quer saber como se diz "soft power" em chinês? Basta entender a expressão "o poder do dinheiro".