sexta-feira, 15 de maio de 2015

Sabe como se diz 'soft power' em chinês?

Por Marcos Troyjo


No maior desfile militar realizado na Praça Vermelha desde os tempos de Staliin, um convidado estrangeiro chamava tanto a atenção quanto o atual inquilino do Kremlin.

Semana passada, ao comandar as comemorações dos 70 anos da vitória naquilo que os russos chamam de "Grande Guerra Patriótica", Putin tinha a seu lado o reluzente presidente chinês Xi Jinping. 

O mandatário russo certamente quis que se enxergasse na imagem o símbolo de uma nova ordem mundial "multipolar", onde Moscou e Pequim são protagonistas. No limite, o pensamento estratégico russo continua a supor, à semelhança do período czarista ou mesmo da etapa soviética, que poder (no sentido político-militar) precede e determina a esfera da riqueza e do prestígio. 

Os chineses nada têm contra o Kremlin atuar dessa maneira. Pequim vê numa Rússia geopoliticamente forte e ambiciosa mais uma frente com que os EUA precisam preocupar-se e despender extenuante esforço diplomático. Quanto mais sanções Washington e as capitais europeias impuserem a Moscou, mais oportunidades abrem-se para a China no acesso a recursos minerais e energéticos. Além disso, aumenta também a necessidade da China ser consultada prioritariamente pelos russos em qualquer tema da pujante massa territorial da Eurásia. 

A diplomacia chinesa ouve com a atenção e até reproduz o conceito de "nova ordem multipolar", tão caro aos russos. Pequim, no entanto, possui sua própria interpretação do que, de um ponto de vista realista e de seu interesse nacional, significa o termo "multipolaridade". A saber, um condomínio global em cujo núcleo, durante algum tempo, EUA e China conviverão como superpotências determinantes -- a primeira, acreditam os chineses, em decadência; a segunda, em ascensão.

Tal percepção, raramente vocalizada pela alta direção em Pequim, mas perceptível nas atitudes e visão de mundo da elite governamental e empresarial chinesa, representa um importante complemento ao planejamento estratégico do país. 

Até há pouco tempo, a liderança chinesa tinha um projeto para sua população: a rápida ascensão do PIB per capita mediante um modelo econômico que conjuga ênfase nas exportações e acúmulo de grande estoque de poupança e investimentos. 

Apresentava também clara concepção de qual deveria ser o papel das elites: conduzir a ascensão socioeconômica num ambiente de oxigênio democrático rarefeito, mas de vigorosa ênfase na estruturação da capacidade competitiva em termos econômicos, científicos e tecnológicos. 

A China igualmente sabia o que queria "do mundo": um panorama global em que o país não precisasse projetar seus valores. Para a China, alguém imitá-la é o mesmo que com ela competir. E, em paralelo, um quadro político-estratégico em que ela não teria de participar de ações militares externas em coalizões pontuais os mesmo sob os capacetes azuis da ONU -- desde que ela própria não fosse territorialmente importunada. 

Faltava, assim, o que a China queria "para o mundo". Essa dimensão de como a ordem global deve funcionar passa cada vez mais a integrar a caixa de ferramentas da diplomacia chinesa. Na medida em que os EUA se vêem oscilando entre o "hard power" (sua inegável proeminência militar) e seu "soft power" (seu desgastado discurso em prol de economia de mercado e democracia representativa), os chineses sabem muito bem onde está seu "nicho" na condição de co-integrante do "G2" ao lado dos EUA. Trata-se do "money power".

Putin sabe que, se as portas do Ocidente se fecharem, outras serão abertas por sua parceria com Pequim. A América Latina se consola por ter perdido o boom das commodities para acelerar reformas estruturais competitivas com empréstimos e investimentos chineses. A África supõe que seus imensos desafios de infraestrutura e industrialização podem ser superados com a cooperação chinesa. 

A criação de um fundo -- alimentado pelo Banco Industrial e Comercial da China (ICBC) -- com US$ 50 bilhões para investimentos em infraestrutura no Brasil a ser anunciada na visita que o premiê Li Keqiang faz ao país na semana que vem ilustra bem o ponto.

Em resumo, estes são os sinais captados por grande parte do mundo -- à exceção de EUA e Europa -- quando Pequim aumenta seu papel como parceira de comércio, empréstimos e investimentos e acelera a consolidação de novos veículos econômicos como o banco dos BRICS ou as muitas iniciativas de financiamento de infraestrutura na Ásia e na África.

Nesse quadro, a China desde Deng Xiaoping claramente adotou um estratégia "etapista". Antes de ser poderosa militarmente, Pequim buscou construir seu lugar ao sol privilegiando seu arsenal econômico. Os chineses estipularam que a geopolítica deve ser precedida pela geoeconomia. O mesmo se observa na busca de irradiar o prestígio de seus valores ético-políticos. 

Quer saber como se diz "soft power" em chinês? Basta entender a expressão "o poder do dinheiro".