sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Petróleo, China e 'novo normal', os fantasmas de Davos

Estrada é esburacada, mas carro não vai capotar

Por
MARCOS TROYJO

Temíveis espectros rondaram a edição deste ano do Fórum Econômico Mundial de Davos. 

Mergulho vertiginoso das cotações internacionais do barril de petróleo. O biombo da desaceleração chinesa e o que ele pode esconder de assombroso. O baixo crescimento das economias maduras perfazendo um "novo "normal".

Tais fantasmas projetam-se ainda mais aterradores para o Brasil. Tempos atrás, quando a descoberta da camada pré-sal foi anunciada, Hugo Chávez sugeria que no futuro teria de se referir ao "Sheik Lula". A riqueza petrolífera brasileira representaria uma "segunda independência". 

Jorrando em abundância, a commodity pagaria por nossa educação, ciência e tecnologia. Em 2007, durante a 17a. Cúpula Iberoamericana, Lula saudava o petróleo como uma "dádiva de Deus", o "coroamento de um país que esteve a ponto de desabrochar e muitas vezes murchava".

O então presidente brasileiro antevia o país como membro atuante da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), onde iríamos "brigar para abaixar o preço".

Parece que o destino acatou as palavras de Lula. No entanto, com a derrocada do preço internacional do petróleo e barril a menos de US$ 30, a pergunta direcionada ao Brasil é se o  pré-sal ainda pode se rentável.

A resposta mais prudente é: conceitualmente, sim. Muitos dos custos da indústria fornecedora de bens e serviços acompanham a queda do petróleo, portanto estão mais baixos. 

Contudo, o preço baixo da commodity em termos internacionais desencoraja novos investimentos da Petrobras na camada pré-sal, o que resulta em impactos negativos sobre a produtividade.

Como regra geral, quanto maior a escala dos investimentos, maior é a tendência à produtividade. De antemão, a conjuntura abundante em petróleo, a má administração da empresa nos últimos 13 anos e a corrupção que vicejou na empresa tornam a empreitada menos lucrativa.

No final de 2015, de acordo com Eduardo Braga, ministro das Minas e Energia, o ponto de equilíbrio do pré-sal encontrava-se abaixo de US$ 35 dólares. 

O fato é que a viabilidade do petróleo brasileiro não deve ser medida apenas na cotação de um dado momento, mas ao longo de determinado período de tempo. Isso vai depender das apostas estratégicas que se façam.

Num cenário, por exemplo, em que a volta do Irã ao quadro de fornecedores é menos robusta do que se imaginava (a infraestrutura em torno da indústria petrolífera naquele país está bastante defasada), os países da OPEP chegam a algum entendimento quanto à limitação da produção e a indústria de combustíveis não-convencionais nos EUA (como o xisto) dá uma desacelerada, o pré-sal brasileiro volta a ser competitivo. 

Este não é um cenário difícil de imaginar. Caso ele aconteça, é de todo possível que o barril volte a preço superior a US$ 50.

O problema é aguardar este horizonte mais desanuviado com penúria de caixa. Todas as empresas petrolíferas estão vivendo tempos difíceis. Não há muitas alternativas do ponto de vista da receita. 

Onde dá para mexer é no campo das despesas e expansão. Isso implica diminuição do quadro de funcionários, venda de ativos, freio nos investimentos etc.

A Petrobras ter, obrigatoriamente, participação mínima de 30% no pré-sal é um dos grandes problemas para viabilizar a extração nessas camadas profundas. O governo deve rever as regras de participação de outras empresas nas licitações do setor.

Na presente conjuntura, a Petrobras não apresenta as mínimas condições de exercer tal participação nos empreendimentos do pré-sal. Ela é uma das empresas mais endividadas do mundo -- e ir a mercado para novas capitalizações não é cenário plausível.

O governo brasileiro também tem de mexer forte nas regras de conteúdo local -- que até agora não apenas oneram a Petrobras, como também trazem grandes atrasos e ineficiências para todo o setor energético brasileiro.

Assim, quanto ao "fantasma" petróleo, nossos erros internos assustam muito mais do que o "momento" internacional da commodity.

Também em relação à China há muito de excesso de pânico. Geralmente os mercados oscilam em reação à qualidade dos fundamentos -- ou seja, àquilo que se sabe -- ou então ao desconhecido. No atual "frisson" quanto à China, o principal sentimento parece ser "deve haver algo de errado que não sabemos". 

Muitos enfatizam a taxa de crescimento chinesa em 2015 (6,9%) como a mais baixa desde 1990. Esquecem, contudo, que com tal percentual a contribuição incremental da China à formação da demanda global é de mais de US$ 700 bilhões, já que que o PIB chinês se avizinha dos US$ 11 trilhões.

Somam-se a isso outros fatores como a incógnita dos resultados das contábeis das empresas nos EUA, o Japão em ritmo lento e alguns grandes emergentes como Brasil e Rússia em forte recessão -- e o quadro desanimador do "novo normal" se complementa.

Há o risco de experimentarmos algo semelhante a 2008 e o desencadear em escala global de uma nova Grande Recessão? Provavelmente, não. 

É menor o risco de novas bolhas no setor imobiliário nos EUA. Aumentou a regulação sobre produtos financeiros "übercriativos". Muitas das economias europeias já promoveram ajustes de austeridade.

Podemos estar numa estrada esburacada, mas o carro não vai capotar. Há hoje, contudo, mais riscos geopolíticos do que em 2008 (Coreia do Norte, Oriente Médio num quadro ainda mais inflamável), mas os vírus econômicos não são tão devastadores como nas crises gêmeas de 2008 e 2011.

Nesse quadro, não deve haver risco de recessão nos EUA. A economia norte-americana prossegue numa trajetória de recuperação e de aumento de sua importância relativa no produto global, seja pela robustez de seu PIB, pela liderança no desenho de novas geometrias de comércio e investimento, ou pela imensa capacidade de inovação de suas empresas -- e portanto de inauguração de novos ciclos econômicos.

O preço do barril de petróleo haverá encontrar seu piso, os números da China precisam vir fortes -- e confiáveis -- e os resultados corporativos nos EUA têm de agradar. 

Estes são os principais moduladores para saber se os fantasmas que aparecerem em Davos assustaram de forma apenas momentânea ou podem ser assombrações mais duradouras. 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A tímida geopolítica das grandes potências

Cenário apresenta casos inflamáveis, mas confronto entre maiores atores não é um deles

Por
MARCOS TROYJO


2016 começa quente, não apenas no clima, mas em acontecimentos de elevado potencial desagregador.
Eles vão desde os desdobramentos da campanha eleitoral nos EUA, passam pelos nervos à flor da pele com o atrito Irã-Arábia Saudita e desembocam nas incertezas com que a China administra sua transição de modelo econômico.

Acrescentem-se o problema dos refugiados na Europa, a virulência do terrorismo do Estado Islâmico e da Al Qaeda e a imprevisibilidade das ações externas de Rússia e Turquia. Compõe-se daí quadro que se revela o mais perigoso desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Muitos desses desdobramentos escapam àquilo que tradicionalmente poderíamos chamar de "razão aplicada à geopolítica". A saber, uma forma de conduta internacional em que a relação custo-benefício, medida sobretudo em termos de ganhos político-econômicos conducentes a situações hegemônicas, é o principal parâmetro a orientar o comportamento das potências.

Nessa linha, a modalidade de jogo geopolítico que se seguiu à derrota das potências do Eixo, comparada a que temos hoje, mostrava-se bastante mais ambiciosa e calculista.

A Guerra Fria era simultaneamente global e "racional". Para além de medir-se em filiações territoriais e ideológicas, tinha como fontes de alimentação duas doutrinas "ocidentais" –os valores político-econômicos das democracias liberais contrapostos aos postulados marxistas da Cortina de Ferro– que perseguiam uma "vitória final".

Há quase nada de motivações "globais" ou "instrumentais" na ebulição entre sauditas e iranianos. Tampouco no apetite russo pela Crimeia e na porção mais oriental da Ucrânia.

E é assim também com o enorme ressentimento que China e Coreia do Sul continuam a alimentar em relação às sangrentas incursões do Japão expansionista do passado.

Mesmo na América Latina, o advento do bolivarianismo teve pouco a ver com a ascensão de um espaço de prosperidade compartilhado a partir da coincidência ideológica que há um tempo galvanizou Venezuela, Argentina, Equador, Cuba, Bolívia e o Brasil de Lula-Dilma.

Foi o positivo choque externo de demanda por commodities o viabilizador desse desdém que tais países da região dispensaram a políticas econômicas desideologizadas.

Essencial fazer tais constatações ante o inegável renascimento da geopolítica. Aliás, esse déficit de racionalidade econômica que alimenta muitas das mais acirradas tensões do mundo contemporâneo seria o principal símbolo de que, ao contrário do que parecia supor o pós-Guerra Fria, o mundo encontra-se mais instável –e imprevisível.

Assim, 2016 seria mais perigoso do que tanto 1945 (com a derrota do Eixo) como 1991 (com a extinção da URSS). A prestigiosa revista "The Atlantic" (http://www.theatlantic.com/politics/archive/2015/12/the-return-of-the-1920s/422163/)) recentemente compara os anos 2010 à década de 1920 –período em que se encarniçaram terríveis monstros geopolíticos.

Nesse tabuleiro, as grandes potências se valeriam dos cenários confusos para estabelecer novas formas globais de dominação e expandir a todo canto do mundo a projeção de sua influência.

NOVA GEOPOLÍTICA

A geopolítica que se descortina agora, no entanto, dá-se em marcado contraste com o caráter de "projeto global" ou "jogo de soma zero" de períodos anteriores da história mundial.

É como se, ante a aguda periculosidade do cenário mundial, as grandes potências estivessem se resguardando de formas mais intervencionistas de política exterior. A geopolítica dos principais jogadores está sob efeito de moderadores de apetite.

Os EUA não necessariamente colocam renovadas fichas no sistema de instituições multilaterais que ajudaram a criar. FMI, Banco Mundial, ONU etc. não estão por merecer um "retrofit" de Washington.

Estão igualmente menos dispostos a comprometer capital político-militar no Oriente Médio. Comprazem-se em seu aparato tecnológico de inteligência e vislumbram nos mega-acordos comerciais no Atlântico e no Pacífico talvez seu principal projeto geoeconômico –mas nada de construir um mundo à sua semelhança.

A Europa pratica uma geopolítica "defensiva" buscando deter e filtrar fontes de problemas oriundos sobretudo da onda de refugiados e de células terroristas incrustadas em seus grandes centros urbanos.

E pensar numa geopolítica europeia mais ativa na África e no Oriente Médio é exagerar o potencial cooperativo da comunidade, que tem na Alemanha seu epicentro, mas não sua liderança.

A China almeja claro reconhecimento da proeminência que exerce em seu entorno geográfico. Busca criar agenda positiva na Eurásia e no Pacífico com projetos de infraestrutura financiados pelo novo complexo de instituições gestadas em Pequim, mas pouco de ambiciosamente global.

O tabuleiro global comporta menos pontos de atrito entre projetos hegemônicos das grandes potências e mais a coexistência de diferentes esferas de influência.

Em seu conjunto, o atual terreno geopolítico apresenta inúmeros cenários inflamáveis, mas o confronto entre os principais atores não é um deles.

2016, o ano em que viveremos perigosamente

Ano novo traz consigo uma palavra forte: risco

Por
MARCOS TROYJO

Uma das constatações mais básicas de que o cenário global passará por profundas alterações em 2016 é a de que 2015 não foi bom para ninguém.

Geoestrategicamente, o mundo está mais instável. Individualismos nacionais ganharam força. Prolonga-se um sentimento de "desglobalização" nos grandes pactos políticos e comerciais. Todos têm de lidar com o flagelo do terrorismo e com a ameaça de um clima global indesejadamente mais aquecido.

Na economia, tornou-se senso comum nestes últimos 365 dias anunciar que os países emergentes deixaram de ser grande fonte de expectativas positivas para converter-se em razões de preocupação.

Há muito de exagero nisso tudo. Os EUA, embora já no quinto ano de expansão econômica e com taxa de desemprego de apenas 5%, ainda terão de lidar com os efeitos colaterais de uma política monetária ultraexpansiva –e eleições que podem levar à Casa Branca o exótico Donald Trump.

Embora muitos acreditem que o líder nas pesquisas de opinião pública para a chapa republicana cometa calculados exageros retóricos, política exterior não se faz apenas de fundamentos. As palavras e os símbolos também são importantes. Isso tudo comporta imenso potencial de desentendimentos nas relações com grandes parceiros como China e México.

Também a Europa encontra-se longe de um cenário harmonioso. Se a crise econômica parou de piorar, os desafios vêm de uma eventual saída do Reino Unido da dinâmica de integração continental (o que a imprensa em língua inglesa chama de "Brexit"), do atordoante fluxo migratório e do tipo de liderança que a Alemanha está disposta a exercer na União (dilema que os próprios alemães esquivam-se de responder).

A China, se impressiona com seus US$ 11 trilhões de PIB, seguramente não cresce mais a velocidades superiores a 8%. Pequim tem de encarar o imenso desafio de blindar seu sistema financeiro com mais credibilidade e transparência e, ao mesmo tempo, modular a evolução da economia política chinesa para além do foco em comércio exterior e investimento. E, pairando sobre isso tudo, continuar a propulsionar o país como superpotência para além da plataforma exportadora.

Ainda assim, num primeiro momento iniciativas como o Fundo da Rota da Seda, o Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento e o Banco dos Brics suscitam mais interrogações que respostas sobre a efetividade da China como epicentro de um novo sistema de relações internacionais.

A Índia de Narendra Modi ainda desfruta da boa vontade doméstica e internacional com as reformas modernizantes pontificadas por seu primeiro-ministro e com a segurança com que o mercado global enxerga a macroeconomia indiana, administrada pelo prestigioso presidente de seu banco central, Raghuran Rajam.

É também alvissareira a conexão que Modi estabeleceu com o vizinho Paquistão, movimento atenuante entre duas potências nucleares que sempre se nutriram de rivalidade histórica.

Em 2016, Modi terá de continuar a lidar com burocracia e corrupção em seu país, provavelmente as mais densas da Ásia, além de manejar conservadores no Parlamento e nas Forças Armadas, que não veem sua política de aproximação com o Paquistão com bons olhos.

A Rússia, apesar de dois anos seguidos de pesada recessão, entrará em 2016 com Vladimir Putin mais forte do que nunca. Retomar a Crimeia, "enfrentar os padrões duplos" do Ocidente e combater o terrorismo com mão forte conferem-lhe grande capital político interno.

Para uns, isso desloca Moscou à posição mais central que ocupa no xadrez global desde o fim da Guerra Fria. Para outros, a sólida autoridade do titular do Kremlin significa uma espécie de "reczarização" –o fim da "transição democrática" a que a Rússia parecia lançar-se com o esgotamento da União Soviética.

Ninguém, nem mesmo os mais críticos observadores da cena russa, vislumbra um quadro em que Putin não seja protagonista. O preço de tal inércia na desejada alternância de poder é alto. Baixos índices de confiança empresarial, custo elevado para o financiamento de empresas, importações mais caras e fuga de cérebros. E o valor depreciado nas commodities energéticas de que a Rússia tanto precisa torna a perspectiva ainda mais complexa.

DESALENTO COM O BRASIL

Na América Latina, destaca-se ainda o desalento com o Brasil, embaralhado em aguda contração econômica e disfuncionalidade política. O contrapeso vem da grande esperança com o aperfeiçoamento institucional –efeito multiplicador da Operação Lava Jato.

Desponta na região, contudo, a vigorosa inflexão argentina. Não apenas mudanças de política econômica, mas de visão de mundo.

O exame das diretrizes propostas por Mauricio Macri em termos de democracia representativa e direitos humanos, papel da imprensa, função do Mercosul e da Aliança do Pacífico faz parecer que os governos Kirchner ocorreram meio século atrás.

Gideon Rachman, principal articulista internacional do "Financial Times", sugere em recente coluna que, em 2015, todos estiveram no limite. O mundo foi "golpeado, ferido e aterrorizado".

2016 promete ser ainda mais complexo. O ano novo traz consigo uma palavra forte: risco.

Diz-se que em conjunturas de grande provação os sentidos ficam mais agudos e as percepções, mais cristalinas. Tomara que assim seja, pois em 2016 viveremos perigosamente.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Maior mal do Brasil não é corrupção, mas falta de estratégia

Ainda que os brasileiros virassem anjos, isso bastaria para o desenvolvimento?

Por 
MARCOS TROYJO


Os atuais níveis de contração da economia brasileira estão equiparando-se aos dos abissais anos 1930.

Àquela época, Hitler e Mussolini davam as cartas na Europa fascista. 

O Japão nutria o ambicioso sonho expansionista mediante o militarismo imperial. 

Os EUA encontravam-se no rescaldo do crash de 1929. Era o tempo da Grande Depressão, do interstício entre as duas grandes guerras.

No Brasil, os longos estertores do modelo da monocultura de exportação, e sobretudo do ciclo do café, ainda eram percebidos. 

A incipiente industrialização do país dava os primeiros passos. 

O Brasil era rudimentar.

Os cenários interno e –particularmente– o externo em que o Brasil amargava aquela recessão eram comparativamente bem mais complexos do que os atuais. 

Tratava-se, no plano nacional, de resgatar o país de um sonolento primarismo. 

Era lidar, no plano internacional, com um mundo mergulhado em abismo que a muitos tragou –e a todos impactou.

Hoje, com todas as suas mazelas, o Brasil é a oitava maior economia do mundo e o segundo maior mercado emergente. 

Apesar de todo o ambiente adverso, logramos marcada competitividade no agronegócio e mesmo em setores intensivos em tecnologia, como a indústria aeronáutica.

Em 2015, embora ainda em marcha lenta, a economia global está crescendo. 

Entre os 50 mais importantes mercados, apenas quatro apresentarão uma desaceleração mais profunda: Rússia, Ucrânia, Venezuela e Brasil.

Diante desse quadro, ecoa a pergunta: "por que o Brasil vai tão mal?". "Qual nosso maior problema?".

O Datafolha captou recentemente a percepção da sociedade: os brasileiros apontam que o grande problema do país é a corrupção.

Ainda assim, por eticamente odiosa e economicamente corrosiva que seja, a corrupção não é a maior das agruras nacionais. 

O principal percalço do Brasil é a falta de estratégia.

Viver num país em que corruptos vão para a cadeia é importante. Trabalhar em prol de uma nação em que se faz justiça, tanto melhor.

A Operação Lava Jato, como histórico divisor de águas para uma nova compreensão da "res publica", tem de ser amplamente saudada. 

Seguramente, uma nova era de transparência e lisura está em gestação. Haverá imensos bônus de aperfeiçoamento institucional.

Imagine, porém, que os heroicos condutores da Lava Jato dispusessem de varinhas mágicas para transformar todos os brasileiros em anjos. Isso bastaria para pavimentar o caminho do país ao desenvolvimento?

Sim, é claro, trata-se de uma substancial tarefa de "terraplenagem" institucional. Parcela importante do Judiciário parece estar fazendo sua parte.

Nosso resgate nacional, contudo, carece de horizontes que se sobrepõem à restrição do espaço de manobra disponível a malfeitores.

O Brasil está à procura de um plano econômico que vá além da contenção de despesas. 

De uma diplomacia que faça mais do que discursar contra as imperfeições do sistema internacional. 

De um pacto de elites que permita ao país algum consenso nas reformas estruturais. 

De um líder, ou grupo de líderes, com competência técnica, sentido patriótico e visão de futuro.

Corretamente, muitos têm indicado, utilizando-se de exemplos como as perdas da Petrobras, que a incompetência traz mais danos que a corrupção. 

Uma das consequências é que hoje nossa petroleira estatal contabiliza um valor de mercado menor que o do Uber, o aplicativo de caronas pagas.

Também é verdade, no entanto, que o deficit estratégico é mais danoso do que a incompetência. 

E o Brasil precisa desesperadamente de uma estratégia de país para lidar com o capitalismo competitivo do século 21.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O Brasil está sem GPS

Marcos Troyjo, professor da Universidade Columbia, fala sobre os desafios do Brasil no mercado global

Por Rachel Cardoso

Assim como todo empreendimento precisa de planejamento para se manter no mercado, o Brasil demanda um plano de negócios com uma visão a longo prazo. A avaliação é do economista Marcos Troyjo, diretor do BRICLab, um centro de estudos sobre Brasil, Rússia, Índia e China (BRIC), da Universidade Columbia em Nova York. Para ele, falta elenco no governo para endireitar a economia política. "Como no futebol, não é só o esquema de jogo que conta, mas também quem são os jogadores", diz. Nesta entrevista, ele analisa o papel do Mercosul, o futuro dos BRICs e situa o País no cenário global, que, mesmo em dificuldade, ainda é o quinto maior destino de investimentos estrangeiros diretos. " O problema é que não sabemos tirar proveito disso"

Hoje, no Brasil, o termo mais repetido é ajuste fiscal, já que o País vem gastando mais do que arrecada, ocasionando um déficit em suas contas internas. Mas para o economista Marcos Troyjo, os problemas nacionais vão muito além disso. O exemplo mais claro é a completa inadequação da legislação trabalhista, completamente ultrapassada e contrária ao que atualmente se faz no mundo. Para ele, é preciso uma ampla reforma, e não só na política econômica, mas também na economia política, que, em geral, são interpretados como sinônimos, mas que na realidade são bem diferentes. "Política econômica é a maneira pela qual você aborda o câmbio, trata a questão de juros, cuida da responsabilidade fiscal. Economia política é quanto do PIB vai ser direcionado por ano para pesquisa, desenvolvimento e inovação, quanto se deseja tornar do PI B meta de exportações e quanto do quociente de inovação se quer que venha do setor privado e por aí vai", comenta Troyjo nesta entrevista. Ele explica que nenhum país do mundo reformou a sua economia e a sociedade sem mexer na economia política. Às vezes, isso acontece de forma muito traumática. O Japão e a Alemanha, por exemplo, saíram destroçados da Segunda Guerra Mundial, mas, depois se reinventaram como nações exportadoras. "A transformação ocorre em três níveis: tático, estrutural e estratégico. E isso demanda projetos de  longo prazo", afirma. "Está faltando ao Brasil o que poderíamos chamar de um plano de negócios, ou plano de nação", ressalta.

 

Até que ponto a retomada do Brasil está atrelada ao mercado internacional?

Os grandes desafios do Brasil passam necessariamente por reformas estruturais internas que preparem o País para as oportunidades externas. Aliás, esse não é um obstáculo atual, mas um problema característico do Brasil. Excluídos os ciclos exportadores de commodities, mais especificamente da monocultura da exportação – de minerais, da borracha, do café e da cana-de-açúcar –, percebemos que é raro o momento em que o Brasil teve mais de 25% do PIB proveniente de exportações e importações. Isso quer dizer que se tem uma crise lá fora, nós não deveríamos sofrer com isso, porque somos pouco dependentes. Apesar de toda essa propagada dependência que o Brasil tem em relação à economia chinesa [o País exporta cerca de US$ 4o bilhões por ano para a China], percentualmente não impressiona quando se fala de uma economia como a brasileira, de US$ 2,5 trilhões. Outro ponto é que o mercado externo continua líquido para investimentos de portfólio. Como o Brasil pratica uma das mais altas taxas de juros do mundo, e levando em conta a média das taxas de juros exercidas pelos bancos centrais dos países mais desenvolvidos, isso significa que o País supostamente deveria ser uma verdadeira bomba de sucção de liquidez financeira. E, aliás, em certo sentido é, já que muitos têm vindo para cá passar um tempo ganhando os benefícios de uma Selic que está nas alturas.

 

O senhor quer dizer especular?

Sim. Não tenho nada contra especular, o problema é o que será feito, qual a estrutura para atrair por mais tempo esse tipo de capital. Quando se olha para investimentos estrangeiros diretos, vê-se que o Brasil ainda é o quinto maior destino desses recursos no mundo. Mesmo em ano difícil como foi 2014, o Brasil recebeu mais de US$ 60 bilhões de investimentos. O problema é você tentar entrar no meandro.

 

Por que isso é um problema?

Muito do que recebemos de investimento estrangeiro direto não chega aqui para fazer do País o elo de uma cadeia de produção global, porque temos regras muito fortes de controle local. É aquilo que chamo de uma "política de substituição de importações 2.0". Nos anos de 1940 e 1950, a substituição de importações significava ter um empresário nacional fazendo a mesma coisa; hoje significa ter uma empresa no Brasil fazendo a mesma coisa. Não temos nada contra a titularidade estrangeira, mas é preciso gerar impostos e empregos aqui. Agora, isso se faz de uma maneira muito cara como política industrial e política comercial. Vamos citar o exemplo do navio de transportes Aframax. Digamos que o preço internacional desse veículo é de cerca de US$ 70 milhões. Nos últimos 12 anos, porém, a Petrobras pagava US$ 125 milhões desde que 65% desse barco fossem produzidos no Brasil, o que é um preço muito alto para a sociedade. Nesse caminho, vamos ao contrário do que está acontecendo em outros países muito mais interligados com a economia global. O investimento de portfólio, mais uma vez, não está vindo ao Brasil pela solidez da nossa economia, mas pelas altas taxas de juros. Em relação ao comércio, se é verdade que nesses últimos meses temos conseguido acumular algum superávit comercial, isso não significa que as nossas importações estão dinâmicas. Estamos importando menos. O Brasil está sem estratégia de comércio exterior.

 

Então estamos sem rumo? Quais seriam os caminhos para a retomada?

Acho que essa ideia de estar perdido é boa maneira de descrever nossa situação. Estamos sem bússola, sem GPS. Isso é terrível. Às vezes, utilizamos determinados termos como se fossem sinônimos – ajuste, reforma ou correção –, mas, na realidade, esses termos querem dizer coisas muito diferentes. Por exemplo, por que se fala em ajuste fiscal? Porque o Brasil entrou numa trajetória de aumento de gastos públicos incompatíveis com suas receitas. Então, o ajuste fiscal traz as despesas um pouco para baixo e tenta colocar as receitas um pouco para cima, com o objetivo de buscar estabilidade. Mas, mesmo com esse equilíbrio, continuamos com problemas, vide a completa inadequação da legislação trabalhista ao que hoje se faz no mundo. Temos uma legislação dos anos 1930. Ninguém decola num avião dos anos 1930. As coisas mudaram. Mais uma vez, é bater no óbvio. Precisamos de reforma e não é só na política econômica, mas também na economia política. Geralmente, fala-se como se fossem sinônimos, mas são coisas bem diferentes.

 

Qual é a diferença?

Política econômica é a maneira pela qual você aborda o câmbio, trata a questão de juros, cuida da responsabilidade fiscal. Economia política é quanto do PIB vai ser direcionado por ano para pesquisa, desenvolvimento e inovação; quanto se deseja tornar do PIB meta de exportações; quanto do quociente de inovação se deseja que venha do setor privado e por aí vai. O modelo de economia política, em minha opinião, é muito mais importante do que essas questões táticas.

 

E como reformar a economia política?

Nenhum país do mundo reformou a sua economia e a sua sociedade sem mexer na economia política. Às vezes, isso acontece de forma muito traumática. Japão e Alemanha, por exemplo, tomaram um choque internacional com a política para a Segunda Guerra Mundial e, depois, se reinventaram como nações exportadoras. A China passou por um processo de enclausuramento que teve na Revolução Cultural nos anos 1960 e 1970 o seu ápice e depois passou por uma abertura controlada, mas muito vinculada com o comércio exterior. A transformação ocorre em três níveis: tático, estrutural e estratégico. Isso demanda projetos de longo prazo. Há alguém no Brasil pensando isso? Não sei. A história mostra que as grandes mudanças de paradigma vêm por meio de um entendimento de elites e, hoje, as nossas estão muito mais preocupadas com o curtíssimo prazo, com a resolução do problema político, do ajuste, do que com outras camadas, são mais transformadoras da realidade brasileira. Está faltando ao Brasil o que poderíamos chamar de um plano de negócios, ou plano de nação.

 

O programa Brasil Maior não caminha nesse sentido? O que deu errado?

Quem é o grande financiador desse programa? É o Estado. Quem é o grande formador da demanda, o tomador de pedido desse programa? É o Estado. Quais são as empresas que supostamente vão capitanear a questão do Brasil Maior, mais especificamente o tema da revolução tecnológica, da inovação? É o Estado. Hoje, vivemos uma situação em que a empresa que mais investe em ciência e tecnologia no Brasil, em pesquisa, desenvolvimento e inovação, é a Petrobras, uma estatal. A melhor coisa que se poderia fazer neste momento é o Estado sair da frente

 

O intervencionismo é ruim?

O Estado ainda é muito intervencionista e isso atrapalha. Acabamos demandando muito nessa história de que quem vai fazer inovação é um iluminado, um ser que vai ocupar o Estado durante algum tempo e que vai virar o jogo. Precisamos escrever uma peça em que o protagonista não seja o Estado.

 

E o Plano Nacional de Exportação, qual a sua avaliação?

Há elementos para dizer que retrocedemos e elementos para dizer que evoluímos. Se olharmos a composição orgânica da pauta de exportações, continuamos semelhantes aos anos 1970, com bens agropecuários, matérias-primas e commodities minerais. Isso se expressa no comércio lateral com a China. Uma tonelada de produtos chineses exportados para o Brasil vale US$ 3 mil, uma tonelada de produtos brasileiros exportados para a China vale US$ 180. É uma diferença brutal. Isso porque um quilo de minério de ferro custa US$ 0, 50; um quilo de computador custa US$ 500; um quilo de satélites custa US$ 50 mil. Aqui no Brasil se diz que é um problema cambial, mas há muitas outras coisas. O Brasil não tem acesso privilegiado aos grandes mercados compradores do mundo. O País não negociou acesso privilegiado com os EUA e a Europa. Mas só o acesso não basta, você tem de reorientar a política de remuneração dos fatores de produção para ganhar competitividade internacional.

 

A relação com os Estados Unidos, depois dessa visita da presidente Dilma, melhora?

O problema é que os Estados Unidos são uma sociedade tão complexa que, por vezes, mesmo uma empatia de dois chefes de governo não gera necessariamente benefícios no campo comercial ou de investimentos. No campo comercial, por razões de lá e de cá. Quais são razões de lá? No rito americano, você precisa que o Congresso ofereça ao presidente a chamada autoridade para a negociação comercial. É pouco provável que neste ano e meio que falta para o fim do governo Obama, ele venha consumir capital político para obter um mandato desse para negociar com o Brasil, uma economia que está em recessão.

 

O Mercosul tem sobrevida?

Depende de qual Mercosul. O Mercosul dos anos 1990 era uma plataforma progressiva de liberalização comercial – este tem. Agora, o Mercosul hoje é um clubinho político que emite comunicados acerca dos males do mundo. Este tem futuro? Também tem, só que ele gera benefício muito pequeno para a sociedade. Não precisamos, no âmbito do Mercosul, emitir posições conjuntas sobre o contencioso Rússia e Ucrânia ou sobre "o sexo dos anjos", precisamos liberalizar o comércio.

 

Que avaliação você faz dos BRICS?

Os BRICs passam agora pela sua "segunda idade". Não vou dizer que os "BRICs 1.0" deixaram de existir, mas dois deles – Brasil e Rússia – estão em "crise existencial" e dois deles estão mais dinâmicos, China e Índia. Pequim continua com crescimento impressionante, embora menor que no passado, ainda assim acho que será a maior economia do mundo daqui a uma dé- cada. Na Índia, há setores de altíssima competitividade e uma sociedade muito desigual, com uma parte da população que vive com menos de US$ 2 por dia e muitos bilionários. Mas é um mercado que tem uma conjunção de fatores muito positiva. O primeiro-ministro Narendra Modi chegou ao poder com um discurso muito pró-negócios, o que gerou entusiasmo. Ele criou um programa chamado Make in India (e não made), quer dizer, "venha fazer a Índia". Se ele terá sucesso, vai depender de uma série de fatores, mas acho que está no bom caminho. [ ]


Revista CONSELHOS* 
No. 33, outubro-novembro de 2015, págs 64-71
*Publicada pela FECOMÈRCIO-SP

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

"O Brasil é o grande Hamlet do mundo moderno"

Marcos Troyjo |Diretor do BRICLab da Columbia University

Entrevista à revista Istoé Dinheiro

Por Márcio Krohen

Ser ou não ser, eis a questão. A frase da peça de William Shakespeare é a melhor tradução do Brasil, segundo o economista e diplomata Marcos Troyjo. O diretor do centro de estudos específicos para os países que fazem parte do acrônimo BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – na Universidade Columbia, em Nova York, diz não enxergar claramente o que o País quer para o seu futuro. "O Brasil é um complexo de posições que o fazem incompreensível para quem quer fazer negócio", diz ele. Entre agosto e setembro deste ano, Troyjo passou 20 dias na China, em sua 12ª visita ao país do presidente Xi Jinping. "Na minha primeira viagem, a China sabia muito bem o que queria do mundo e o que era preciso extrair para o seu grande projeto", afirma. "Agora, cada vez mais, a China sabe o que ela quer para o mundo." De dentro da Muralha vermelha, Troyjo tentou compreender o que é a crise chinesa e como seus governantes e empresários avaliam a situação atual do Brasil. As críticas, no entanto, não bloquearam a estrada de oportunidades. "Os chineses estão loucos para aproveitar os bons preços das empresas brasileiras, que ganharam atratividade por conta da defasagem do real", diz ele.

DINHEIRO – O que se vê apenas dentro da China, que não se vê de fora?
MARCOS TROYJO – A primeira observação é de que estamos acostumados a observar que o milagre econômico chinês deixou as pessoas mais prósperas, que elas passaram a viajar e conhecer outras realidades e que, portanto, a fórmula do sucesso do seu crescimento será o da derrocada do regime fechado. No entanto, a lógica de que os chineses vão começar a demandar mais democracia e mais liberdade não é verdadeira. O ex-cônsul do Brasil em Xangai, Marcos Caramuru, é quem consegue interpretar melhor a China por dentro. Ele diz que os chineses não têm a menor paciência para as ineficiências da democracia. A segunda observação é uma mudança de fases na China. Visito o país há 12 anos. Em 2004, na minha primeira viagem, a China sabia muito bem o que queria do mundo, sabia o que era preciso extrair do mundo para seu grande projeto. Agora, cada vez mais, a China sabe o que quer para o mundo. Ela, por exemplo, vai flertar cada vez mais com experimentos de conversibilidade internacional da sua moeda, com transações comerciais em yuan. É um país que está se expandindo em outros atributos, não apenas no econômico. Está nascendo uma superpotência, que já é econômica, mas vai transbordar para outras esferas das relações internacionais.

DINHEIRO – Como o Brasil pode se beneficiar dessa nova China?
TROYJO – Ao contrário do que se imagina, a China continua cheia de oportunidades para o Brasil, que tem uma presença ínfima no país. A promoção que os brasileiros fazem na China é nenhuma. Incluem-se aí desde empresas, associações patronais do comércio e das indústrias até a Apex, que faz um bom trabalho com um escritório, mas, que precisaria estar em mais lugares e de forma mais presente. Os chineses têm um jeito de fazer negócio baseado no encontro pessoal, de sentar para jantar e saber quem você é. É preciso investir tempo e foco na conquista do mercado chinês, seja como destino de exportações ou como atração de investimento estrangeiro direto. Os chineses estão loucos para aproveitar os bons preços das empresas brasileiras, que ganharam atratividade por conta da defasagem do real. Eles querem entrar na onda de fusões e aquisições. Então, este é o momento dourado para as empresas que estão buscando um sócio ou um aporte de capital.

DINHEIRO – Por que a China ainda é vista pelos empresários apenas como uma válvula de escape para os altos custos no Brasil?
TROYJO – De cada dez visitas que o empresário brasileiro faz à China, nove são para buscar outsourcing. O empresário fabrica no Brasil, mas não aguenta mais a carga tributária e quer produzir na China. Obviamente que isso se tornou mais difícil nos últimos 18 meses, pelo colapso do real, mas a atração de investimentos brasileiros na China é pequena. Das 15 maiores economias do mundo, aquela que tem o menor coeficiente de exportações e importações em relação ao PIB é o Brasil. Mas, na atração de investimento estrangeiro direto, que neste ano vai ser ruim, o País vai melhor. Nos últimos 10 anos, ficou entre o quinto e o sexto lugares. Agora, virá outra qualidade de investimentos diretos, que são aqueles que buscam associação. Para isso, temos de mostrar quais são as oportunidades. O Brasil não está fazendo isso.

DINHEIRO – O Brasil continua sem saber o que quer ser?
TROYJO – Creio que o Brasil é o grande Hamlet do mundo contemporâneo: a questão do ser ou não ser. Não sabemos se somos uma sociedade que quer continuar no capitalismo latino-americano, à la Venezuela ou Argentina, ou se queremos ficar mais parecidos com os países da Aliança do Pacífico, como México ou Chile. Tivemos uma atitude de colocar obstáculos nas tratativas comerciais americanas, de 2004 a 2012. Agora, parece que queremos voltar a namorar os americanos. Quer dizer, não é a ausência de posições, é um complexo de posições confusas que deixa o Brasil pouco compreensível para quem quer fazer negócio conosco.

DINHEIRO – Como o País está sendo visto de fora?
TROYJO – Todos reconhecem que se olhar na mesa de comando, com as soluções, é possível reverter a expectativa sobre o Brasil de maneira muito rápida. O problema é que essas boas soluções técnicas, de como deixar o País num bom caminho, têm um peso de papel por cima, que é a falta de credibilidade política. Como não temos o cimento político, não conseguimos ajustar a política econômica e, com isso, não mexemos nos pilares mais profundos, que é a economia política. Sem isso, não temos como aumentar o percentual do PIB para pesquisa e desenvolvimento, ampliar o coeficiente do comércio exterior, abrir setores e mudar o foco da política industrial, entre outros fatores. Os próximos 24 meses serão de grande provação para o País.

DINHEIRO – O que os chineses falam sobre o Brasil?
TROYJO – O discurso chinês não é polifônico, como nos EUA e na Europa. Na China, as opiniões para o Brasil são mais simples e menos diversificadas. A ideia de que o Brasil está passando por dificuldades temporárias, e que vai superá-las, é muito pautada pelo interesse de Pequim, que quer manter uma aliança-econômica que irá além do curto prazo. Agora, quando se conversa com outros agentes de mercado, como diretores de departamentos de pesquisas das universidades, está todo mundo muito decepcionado com o Brasil. Porque se imaginava que, como qualquer outro lugar do mundo, o País conseguiria promover algum tipo de reforma estrutural, como, aliás, os chineses estão fazendo, para mudar o DNA da economia e se adaptar aos novos tempos. Mas minha impressão é de que esses grandes investimentos, sobretudo em infraestrutura, como os anunciados na visita do premiê Li Keqiang ao Brasil, neste ano, vão acontecer.

DINHEIRO – Há uma expectativa grande, embora exista a impressão de que os chineses não cumprem com seu papel de investidor nos parceiros emergentes.
TROYJO – O que é interessante é que essas decisões de investimento da China são menos resultado do desempenho econômica interno, sobretudo no Brasil, e muito mais em função do interesse chinês. É como se, em primeiro lugar, viesse a necessidade de garantir a segurança alimentar, e da cadeia de produção como um todo. Por outro, essa história de que a demanda chinesa pelas commodities minerais está arrefecendo, é bobagem. A demanda chinesa continua muito aquecida porque a China precisa multiplicar por quatro vezes a infraestrutura que tem. Não há uma superprodução, mas um excesso, que levou ao barateamento das commodities minerais. Mas os chineses estão dispostos a fazer chover dinheiro em infraestrutura para garantir acesso ao que precisam. Portanto, esses investimentos virão para o Brasil. O que pode atrasar um pouco é o fato de que os próprios chineses estão ficando com a economia mais sofisticada e querem entender melhor o que está acontecendo com eles próprios. Seguramente, tiveram dificuldade para compreender a montanha-russa da Bolsa de Xangai. Eles estão prudentes.

DINHEIRO – O que é essa nova China?
TROYJO – A China era, para o mundo, um grande trampolim de exportações e a grande fábrica global. Hoje, o país está em quatro frentes interessantes: continua como o maior exportador do mundo, passa a ser uma fonte de energia direta, o grande financiador do desenvolvimento e a demandar a liderança nos segmentos econômico-financeiros. Em vez de reformar o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial, por exemplo, a China está liderando a criação do banco asiático de infraestrutura, bem como o fundo da rota da seda para investimento na sua vizinhança, e é a protagonista do Banco dos Brics.

DINHEIRO – Como é possível interpretar as crises recentes da China?
TROYJO – Esse movimento da bolsa de valores é de difícil explicação, embora eu entenda que a China ter depreciado o câmbio unilateralmente é pior para a economia do mundo do que esse vai-e-vem dos índices da Bolsa de Xangai. A bancarização e o mercado de capitais na China têm um grau de internacionalização muito inferior ao das outras economias que fazem parte do G20. Os chineses dispõem de muitas ferramentas para combater as crises de liquidez, se é que elas já estiveram no mapa de uma maneira substantiva, e não apenas são reflexo de pânico de um ou outro movimento. A China conta com quase US$ 3,7 trilhões em reservas cambiais. Agora, como a absoluta prioridade do governo chinês é manter a taxa de desemprego baixa, num momento em que ocorre a transição para o modelo de consumo, o país se apega naquilo que conhece e sabe fazer, que é exportar. A China ultrapassou a Alemanha como principal exportador mundial, em 2009 e, desde 2013, é a maior exportadora e importadora global. Ela, mais uma vez, pegou o caminho do comércio exterior, mesmo porque o principal destino para as suas exportações são os EUA, uma economia que voltou a crescer. É muito impactante para o mundo essa mudança na política cambial chinesa, de valorização constante do yuan.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O que significa a nossa "crise"?

Nações não se desenvolvem apenas por evitar catástrofes. Crises acabam quando, além de pessoas, mudam os paradigmas

Por Marcos Troyjo


O rebaixamento da nota do Brasil pela agência Moody's de classificação de risco vem juntar-se a uma saraivada de más notícias sobre o país.

Esse acervo ominoso que compila crescentes mazelas políticas, econômicas e morais passou a merecer desta Folha um selo especial de cobertura e análise : "Brasil em crise".

Observadores da cena nacional no exterior, de bancos de investimento a estudiosos de Brasil nas universidades, espantam-se com a complexidade da "crise" brasileira. 

Noticia-se que a Presidência deseja entendimentos com a elite empresarial e partidos para além de sua base aliada de modo a atenuar a "crise". 

Movimentos sociais arregimentados pelo Planalto buscam contrapor-se às manifestações antigoverno, mas pregam o abandono do ajuste fiscal como medida de superação da "crise". 

Entidades patronais como Fiesp e Firjan cerram fileiras em torno do chamamento do vice-presidente por união como forma de dirimir a "crise".

O que todas essas noções de "crise" apresentam em comum é a ideia de um conjunto de dificuldades formado pela convergência de obstáculos de diferentes natureza que se acumulam num mesmo período de tempo. 

Mas será que é isso mesmo? No caso brasileiro, um Congresso plenamente antenado com o Palácio do Planalto (ou seja, sem "crise" política) produziria um resultado melhor para fins do desenvolvimento brasileiro?

Imaginemos que as pedaladas fiscais dos últimos anos tivessem escala menor, ou que a intervenção em preços públicos houvesse sido mais tênue, evitaríamos assim a "crise" econômica que nos aflige?

À luz das experiências internacionais exitosas de superação de grandes desafios fica patente que na classificação da atual crise brasileira continuamos a confundir conjuntura e estrutura. 

Aquilo que tangencia a governabilidade presente, o ajuste fiscal ou a substituição na titularidade do Planalto compõem o medicamento contra uma "crise" entendida apenas como amontoado de "dificuldades temporárias". 

Ficando apenas na conjuntura, isso não exigiria necessariamente uma correção de rumos muito mais ambiciosa. "Escapar da crise" significaria tão simplesmente afastar-se de um esgarçamento mais danoso do tecido socioeconômico de modo a evitar tragédias gregas ou pesadelos bolivarianos.

As nações, contudo, não se desenvolvem apenas por evitar catástrofes. É preciso também ter a dimensão construtiva, o planejamento de longo prazo.

O afastamento de chefes de governo é por vezes desejável e mesmo imprescindível. Crises de conjuntura podem até ser desmontadas, mas isso não é o bastante para enveredar-se pelo bom caminho adiante. Seria ótimo àqueles que saírem às ruas nos próximos dias ter isso em mente.

Nesse contexto, a mais útil acepção  de "crise " é aquela que a define como período em que o velho ainda não morreu, mas o novo também não nasceu. Esse processo, no entanto, nada tem de "orgânico". Aquilo que é velho não necessariamente desaparece -- e o surgimento do novo tampouco é certo.

Thatcher pôs fim à "velha" sucessão de décadas de declínio britânico e lançou as bases para o competitivo Reino Unido de hoje. Já países como Argentina e Rússia encontram-se ciclicamente enredados em modelos de economia política que combatem a modernização com diligência.  Nesses casos, a "crise" é uma endemia a sabotar permanentemente o "novo" e, portanto, a prosperidade.

É fundamental a leitura das portas que se abrem e fecham para o Brasil num cenário global recortado por novas geometrias de comércio e negócios e redes de valor intensivas em tecnologia. Redimensionar o Estado no Brasil para um papel menor, mas melhor. Nada disso tem integrado o receituário que se propõe para o enfrentamento da "crise" brasileira. 

Estamos prisioneiros da armadilha do presente. Uma crise acaba quando se mudam não apenas as pessoas, mas os paradigmas.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Como as nações voltam do inferno

 "Quem são os líderes?" "Quais elites atenderão ao chamado?" "Quem tem um plano?"
 
Por Marcos Troyjo


O diagnóstico mais elementar que se oferece a situações de múltiplas crises (econômica, política, moral) enfrentadas por nações em diferentes contextos históricos vale-se, na maioria das vezes, de um familiar – e correto – senso comum.
 
Com o Brasil atual não é diferente. Evitar o inferno viria de menos "politicagem" e mais "política" – bem como mais honestidade, trabalho, investimento e competitividade.
 
Teríamos de aprimorar a "classe política", pois esta é, salvo exceções, corrupta e disfuncional.
 
Haveria de aumentar o grau de honestidade da relação público-privado, pois assim inviabilizaríamos, na fonte, toda uma série de falcatruas.
 
Caberia ao brasileiro trabalhar melhor, pois norte-americanos e alemães apresentam produtividade quatro vezes maior.
 
Seria função do empresariado investir mais, pois não apenas nossa taxa de investimento como percentual do PIB é das mais baixas entre países emergentes, mas também a predisposição dos empreendedores brasileiros em correr mais risco na atual conjuntura encontra-se muito fragilizada.
 
Cumpriria ao governo mais acordos no campo do comércio e de cooperação industrial e tecnológica, pois só assim ofereceríamos novos mercados e parceiros a nossas empresas, garantindo-lhes competitividade e, portanto, longevidade.    
 
De fato, se a política fosse menos corrompida, as relações estado-sociedade civil mais transparentes, o povo mais trabalhador, o empresário menos acomodado e o governo menos protecionista, estaríamos mais distantes dessa armadilha infernal de apatia econômica, anomia política e espanto moral que hoje nos consome.
 
Ninguém aqui ousa negar a importância de políticos probos, atores públicos e privados parametrizados por instituições, prevalência da ética do trabalho, predileção por uma presença internacional mais competitiva das empresas brasileiras.   
 
Todas essas características, no entanto, não se instalam nas nações de forma laboratorialmente sincrônica e uniforme. Muitos países tidos como competitivos ou mesmo desenvolvidos apresentam flancos vulneráveis em todos esses quesitos.
 
A Itália tradicionalmente contrasta inoperante esfera governamental com imponente classe empresarial, seja nas firmas de menor porte ou nas gigantes multinacionais italianas.    
 
As relações governo-empresas na China está longe de ser parametrizada por noções como "compliance", "melhores práticas", "relações com investidores". As recentes intervenções das autoridades centrais no contexto das oscilações da Bolsa de Xangai é apenas um de muitos exemplos de falta de transparência.   
 
A geração de alemães hoje na faixa dos 70 anos reclama que seus compatriotas mais jovens só querem saber de turnos de serviço de 36 horas por semana. Assim, o país nivelaria por baixo sua força de trabalho com a atração de mão-de-obra mais barata e menos qualificada do leste europeu.  
 
Na Coreia do Sul e no Japão, é grande o temor de que os mega-conglomerados multisetoriais anestesiaram seu apetite por risco e inovação e movimentam-se apenas pela manutenção de seu atual "market share" global.
 
Apesar de todo apelo conceitual à livre concorrência e a acordos de liberalização comercial, em todos os países que compõem a União Europeia se praticam abusos protecionistas, particularmente no âmbito da PAC, a Política Agrícola Comum.
 
Nessa linha, fica claro que para a saída da presente crise brasileira é impossível copiar imaginários modelos ideais. Ainda assim, tendo experimentado o inferno, muitas nações conseguiram, chamuscadas, voltar dele por que obtiveram vitórias pontuais, mas concretas –e daí ingressaram num gradual aprimoramento.
 
Em todos os casos de superação, no entanto, convergiram, como precondições, alguns fatores essenciais: liderança, equipe e estratégia.
 
Assim foi nos milagres econômicos asiáticos como os presididos por Lee Kuan Yew em Cingapura e Park Chung-Hee  na Coreia dos Sul. Tal convergência também se manifestou na Espanha dos Pactos de Moncloa ou no Reino Unido de Thatcher.
 
Para tais vitórias, foi fundamental que lideranças públicas se associassem a elites funcionais municiadas de um mapa do caminho. Daí, a gravidade da conjuntura brasileira.
 
As nações voltam do inferno quando respondem satisfatoriamente a três questões: "quem são os líderes?" "Quais elites atenderão ao chamado do destino?" "Quem tem um bom plano?"  

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Como as nações vão ao inferno

Caos se instala quando elites complacentes operam na falência múltipla de instituições

Por
MARCOS TROYJO

O crescente mal-estar com o estado de coisas no Brasil tem levado as pessoas a perguntar: "como termina essa crise?" "O Brasil sai dessa?" "Quando acaba esse inferno?"

No exterior, queixos caem com a velocidade da transição do hiperentusiasmo com o país ao atual desencantamento. Para os que comparam as nações por seus atributos de poder, prosperidade e prestígio, o Brasil deixou rapidamente o céu da euforia rumo ao inferno do desalento.

Nos anais da triste história mundial de malogros endógenos, o Brasil não está sozinho – tampouco figura entre os casos mais graves.

Apenas para ficar nos últimos cem anos, é fácil concluir que fracassos e desastres a acometer diferentes nações, em variadas escalas, resultam sobretudo da autossabotagem.

O nacional-populismo é, há um século, o grande vilão da prosperidade corroída na Argentina.

A ascensão do totalitarismo na Itália e na Alemanha nos anos 1920-30 não resultou de um vírus externo "plantado" naquelas sociedades, mas da adesão de povo e elite àqueles abjetos sistemas de poder.

Quando o Japão militarista enxergou em possessões francesas, britânicas e holandesas escassamente protegidas no Pacífico uma "oportunidade dourada" para seu expansionismo, poucos japoneses levantaram-se em oposição.

A Revolução Cultural na China paralisou o país por uma década e subtraiu-o de alguns de seus melhores talentos. Estratagema de demônios estrangeiros? Não, das profundezas da mente de Mao.

A atual propulsão brasileira a caminho do inferno alimenta-se de cinco combustíveis.

O primeiro: má gestão macroeconômica que, com a "Nova Matriz", abalou alicerces da estabilidade monetária e fiscal e agora coloca o país às portas de perder o grau de investimento.

O segundo: miopia na estratégia de inserção internacional, centrada no protecionismo comercial e na diplomacia "Sul-Sul". Não trabalhamos para ingressar nas redes globais de valor e, com isso, aumentar nossas exportações. Álvaro Fagundes e Renata Agostini mostram nesta Folha que, num ranking de 150 países compilado a partir do percentual do PIB representado por exportações, estamos à frente apenas de Afeganistão, Burundi, Sudão, República Centro-Africana e Kiribati.

O terceiro: inoperância da economia política Estado-capitalista. Hipertrofiou-se a presença estatal como formadora da demanda, financiadora de setores privilegiados e instância empreendedora. E essa onipresença estatal deu-se, compreensivelmente, na ausência de urgentes reformas microeconômicas.

O quarto: propinodutos nas estatais e seus efeitos colaterais – as terríveis e inevitáveis consequências paralisantes para a atividade econômica da guerra à cleptocracia.

O quinto: o pronunciado e lamentável deficit de liderança pública.

Contudo, no atual caos brasileiro não há, de forma ampla, o mais perigoso dos alinhamentos malignos – e de que o século 20 está repleto de exemplos.

As nações só descem realmente ao inferno quando elites plenamente complacentes com o poder dirigente operam no vácuo da falência múltipla de instituições.

No Brasil, nem toda a elite é parasitária do poder de ocasião. E muitas instituições, da imprensa ao Judiciário, encontram-se em pleno vigor.

Sartre dizia que o inferno são os outros. O Brasil não pode argumentar o mesmo. Suas agruras são majoritariamente fruto dos próprios pecados.

Por isso, sua redenção –"sair dessa"– é algo que não depende do cenário internacional.

Evitar o inferno deriva tão somente do funcionamento das instituições e do grau de patriotismo da parte mais iluminada da elite brasileira.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Vem aí a 'Competição entre Globalizações'

Na corrida das grandes potências, esferas de influência não se restringem à vizinhança geográfica 

Marcos Troyjo

Ainda há elementos abundantes no cenário internacional contemporâneo alinhados à tese do "G-Zero", formulada pelo influente cientista político Ian Bremmer.

Não obstante uma economia global com alguma recuperação, os países continuam a operar na lógica egoísta do "cada um por si". Para Pedro ganhar, Paulo tem de perder.

Comparados aos "Exuberantes Anos 90" (The Roaring Nineties), título de um livro do economista Joseph Stiglitz, ganhador do Nobel, os atuais fluxos de comércio estão mais seletivos. Os movimentos de capitais e trabalhadores, mais restritos. Agências internacionais como o Banco Mundial e o FMI, menos globais.

Esta fase de "desglobalização", a que contribuíram eventos como o 11 de Setembro ou as crises financeiras de 2008 (subprimes) e 2011 (passivos soberanos europeus), ainda não se dissipou.  

Por que a "Globalização 1.0", aquela que se seguiu à Queda do Muro de Berlim, foi tão severamente abalada?

Há, por um lado, um mundo inquestionavelmente mais conectado por tecnologias. Hoje é bastante mais fácil o acesso a viagens internacionais. Aprofundou-se o fenômeno das redes produtivas globais. A economia mundial tornou-se mais interdependente.

Por outro, a Globalização, em termos conceituais, deveria ter ido muito além do que o mero avanço nas comunicações e nos transportes. Ela deve abranger instituições e consensos de alcance cada vez mais planetário.

Dessa perspectiva, são muitos os sinais de que o mundo se desglobalizou.

A ONU não está mais forte. A OMC não se apresenta funcional e consolidada. A opinião pública global não se manifesta de modo mais uniforme.

Economia de mercado e democracia representativa não representam unanimidade. O Ocidente não triunfou de forma absoluta. A história não acabou.

Diferentes fatores concorreram para minar a Globalização 1.0.

A crença cínica dos EUA em sua excepcionalidade afastou-os da adesão ao Tribunal Penal Internacional e ao Protocolo de Kyoto.

Os anacrônicos subsídios europeus ao seu paparicado agricultor depreciaram o capital moral de Bruxelas para negociações comerciais.

Soberba e miopia dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU imobilizaram qualquer dinâmica de reforma e atualização daquele órgão central da diplomacia multilateral.

Apego ao protecionismo, substituição de importações e afinidades ideológicas pelas relações Sul-Sul afastaram países como Brasil, Argentina e África do Sul das potências na Europa e América do Norte.

Todo esse acervo antiglobalização acabou por gerar curiosas e incidentais alianças de conveniência.

A esquerda "progressista" brasileira bradava contra a Alca, assim como o discurso oficial da Venezuela chavista ou a porção mais nacionalisticamente à direita do Partido Republicano nos EUA.

Ativistas contra a tecnologização do campo na América Latina e na Índia caíram como luva às posições mais protecionistas do lobby agrícola europeu.  

O outsourcing global direcionado à China e as robustas taxas de retorno que tais atividades industriais propiciaram ao capital manufatureiro consolidaram uma ética de padrões duplos.

Potências ocidentais preferiram "olhar para o outro lado" quando o assunto era a problemática relação direitos humanos/condições laborais na China ou o rarefeito oxigênio democrático naquele país.

Socorro oficial e crescente intervenção governamental nos EUA e Europa ofereceram munição renovada a entusiastas do Capitalismo de Estado nos Brics.

O mais interessante, no entanto, é que o atual quadro "desglobalizado" não tem produzido vencedores.

Ninguém ganhou com o malogro da Globalização 1.0. O mundo está mais perigoso e menos economicamente dinâmico. Os mais confortavelmente céticos rotulam a presente conjuntura de "O Novo Normal".

O paradoxal, contudo, é de que agora em diante a própria projeção do interesse nacional de potências como EUA e China tem tudo para produzir mais, não menos Globalização. E tal dinâmica será bem distinta do que se observou com o fim da Guerra Fria.

A família de novas instituições financeiras sinocêntricas (diferentes bancos para Brics, infraestrutura na Ásia, etc.); a pujante presença chinesa como investidora direta e de portfólio no mundo, e ambicionada internacionalização do renminbi constituem alguns dos muitos veículos da Globalização projetada por Pequim.  

Uma nova onda de cooperação tecnologia; a unificação de regras de investimento e propriedade intelectual em novas geometrias de comércio lideradas pelos EUA junto à Europa e à Ásia-Pacífico, perfazem algumas das pontas da Globalização engendrada por Washington.

Durante um certo tempo, trabalhamos com o paradigma do "Choque de Civilizações", formulação do cientista político Samuel Huntington, que sugeria conflitos de diversas proporções alimentados por diferenças de cultura – e, portanto, de visão de mundo.

O mais provável, no entanto, é que estejamos ingressando numa fase de "Competição entre Globalizações".

Na Globalização 1.0, a aposta era no fortalecimento de instituições multilaterais;  economias indistintamente mais abertas e integração regional. Uma marcha vagarosa, porém progressiva, rumo a democracias representativas e ao que, em termos amplos, poderíamos chamar de "sociedade aberta".

Na Globalização que vem por aí, instituições multilaterais têm menos papel efetivo e mais força simbólica. A ideia de esferas de influência não se restringe à vizinhança geográfica (vide a presença chinesa na América Latina e África ou a tentativa dos EUA em aumentar sua influência na Ásia).

Nesta "Reglobalização", a identidade se dá menos na uniformidade da vida institucional (democracias cooperando com democracias) e mais na coincidência de interesses (EUA cooperando com autocracias no Oriente Médio; ou o regime chinês resolvendo indistintamente problemas de financiamento de democracias latino-americanas ou cleptocracias africanas).

Envolto num misto de incompreensão e paralisia ante a evolução do cenário global, o Brasil se apresenta inerte ao embate entre projetos globalizadores.

O País representa polo passivo na agenda definida por Pequim para a América Latina. Pouco se esforça para influir no desenho de acordos econômicos plurilaterais. Hesita em pragmaticante despriorizar o discurso pela improvável reforma do Conselho de Segurança da ONU. Não reconhece que concentrar fichas no jogo comercial a partir da OMC é um sonho. Finge que o Mercosul ainda é para valer.

Sem qualquer estratégia, e às voltas com seus demônios internos, lembra um distante e desinteressado espectador.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O Brasil vai voltar?

Sem estratégia, país dificilmente 'reemergirá'

Por Marcos Troyjo

Há poucos dias, durante a cerimônia de entrega do prêmio Pessoa do Ano, outorgado pela Câmara Brasil-EUA de Nova York, coube ao publicitário Nizan Guanaes o discurso de apresentação do homenageado norte-americano, o ex-presidente Bill Clinton. FHC foi o laureado brasileiro.

Em sua fala, referiu-se ao otimismo de Clinton quanto aos EUA no período mais agudo da Grande Recessão desencadeada em 2008 pela crise das dívidas do tipo "subprime" -- com efeitos lancinantes no setor financeiro dos EUA e em todo mundo.

Naquele instante de desalento, em que seu status como superpotência foi mais que nunca questionado -- e se estabeleceram supostas certezas quanto ao declínio progressivo e inevitável dos Estados Unidos --, Clinton sugeria: "Nós [os EUA] vamos voltar".

Fazendo um paralelo com o atual desânimo e desapontamento, no país e no exterior, quanto aos rumos do Brasil, Nizan também apostou: "Nós [o Brasil] também vamos voltar". O publicitário revisitou o tema em sua coluna da terça-feira passada nesta Folha.

Pode-se dizer que Clinton estava certo. Ainda que distante do ideal, a economia dos EUA recuperou-se em grande medida.

O valor das empresas nas Bolsas já supera os níveis pré-crise. A produtividade continua dinâmica. Há um refluxo de capitais industriais antes estacionados na China. Washington lidera o desenho de novas geometrias de comércio e investimento no Atlântico e no Pacífico. Como vaticinava Clinton, os EUA de fato "voltaram".

As atitudes empreendedoras e um ambiente amigável aos negócios alavancaram a retomada norte-americana.

A atmosfera pró-mercado, tão presente em empresas e universidades, facilita essa reinvenção do país. Como tecnologias e setores surgem, amadurecem e são substituídos por outros, o jogo da inovação é o grande motor da economia dos EUA.

Graves acidentes, como a crise dos "subprimes", deixam seus traumas e cicatrizes. No entanto, se o ambiente econômico-institucional continua operando abertamente e conduzindo a inovações em série, a ideia de que os "EUA voltarão" tem menos o aspecto de "fé num destino manifesto e naturalmente realizável".

É mais o resultado de um "movimento cíclico". Os EUA continuam a ser -- com a crescente companhia da China -- o grande núcleo irradiador de novas práticas e tecnologias às quais o resto do mundo tem de se adaptar.

Nesse contexto, em que a ascensão e a queda das nações, no limite, resultam de suas capacidades endógenas de promover inovações, será que o Brasil "vai voltar"?

A recente "Brasilmania" que se sentiu em todo o mundo (sobretudo no período 2006-2011) não resultou majoritariamente de maciços processos de incremento de produtividade e inovação.

Tal sentimento positivo em relação ao país -- agora infelizmente substituído por ceticismo e decepção --originou-se de fatores que, sem dúvida, levam uma nação a crescer durante um certo tempo, mas não a mudar de paradigma.

Bônus demográfico com mais gente trabalhando e expandindo a riqueza das famílias, descoberta de petróleo em águas profundas, mais consumo e crédito a setores de renda baixa -- tudo isso ajuda a crescer.

Com a escala territorial e populacional brasileira, chama-se a atenção do mundo -- ainda mais com nossas vantagens comparativas nas commodities minerais e agrícolas que tanto nos ajudaram a engatar o vagão do crescimento na locomotiva chinesa.

Nada disso, no entanto, é suficiente se a opção é pela hipertrofia do setor público; se as universidades ainda travam o embate esquerda-direita nos termos dos anos 1960; se as empresas têm de dedicar mais tempo ao peso e peculiaridades do Fisco do que ao esforço pela geração de novas patentes; se em termos de comércio internacional ainda somos uma das economias mais fechadas do mundo.

Para "subir o degrau", o Brasil precisa construir alguns consensos sobre a forma como vai gerar riqueza.

O mais básico deles reside numa reforma institucional pró-negócios. O país está preocupado com a possibilidade de perder o "investment grade" -- o que é importante e legítimo. Deveria igualmente aproveitar este momento de rearrumação para promover um "business grade".

Não há nada de irreversível no declínio brasileiro. Também não há nada de automático e assegurado de que o Brasil reemergirá.

Esta não é uma questão de ausência de otimismo ou de se esquivar do aproveitamento de oportunidades em tempos de crise. É o resultado de uma brutal falta de estratégia.

O país acaba de perder posições no ranking global de competitividade elaborado pelo IMD da Suíça e pela Fundação Dom Cabral, encontrando-se agora em sua pior classificação desde que a métrica foi lançada, em 1989.

Isso se deve à falta de espírito empreendedor? Indisposição ao trabalho duro? Medo de enfrentar desafios? Não.

O governo brasileiro precisa sair da frente. Ou melhor, ser o arquiteto de reformas estruturais que lhe permitam ser menor e melhor. Só assim a criatividade brasileira se transformará em inovação –- único caminho viável para o Brasil "voltar".

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A extroversão chinesa tem muitas faces

Pequim projeta para além da Ásia seu interesse nacional, não solidariedade entre emergentes

 
Por Marcos Troyjo
 
 

Se podemos extrair uma conclusão do atual périplo do premiê chinês pela América do Sul, é a de que Pequim deseja projetar o alcance de sua influência para muito além da mera vizinhança asiática. 

Tal irradiação de força econômica tem menos que ver com suposta solidariedade entre potências emergentes; mais com o interesse nacional chinês coincidindo com um quadro de necessidades sul-americanas. 

Não deve haver espaço para qualquer sentimentalismo Sul-Sul. Tampouco cabem análises inocentes quanto a características do modus operandi chinês no âmbito infraestrutural incidirem automaticamente sobre o "tempo brasileiro" na execução de obras.

A China é conhecida por realizar megaprojetos em prazo recorde. A celebrada entrada dos chineses no setor de infraestrutura leva alguns a supor que a partir de agora se pode acelerar a conclusão de projetos que tradicionalmente se arrastam por anos no Brasil. Outros acreditam que a burocracia brasileira ainda é mais forte que a "eficiência chinesa".  

Este sem dúvida é um interessante cabo-de-guerra. Além da conhecida burocracia brasileira, o País ainda tem de operar num contexto de múltiplos atores institucionais – governos federal, estadual e municipal, ministério público, agências reguladoras – complexificado por um forte lobby ambiental e a imprensa livre. 

Embora falta de capital, déficit de liderança ou incompetência gerencial tenham sido determinantes, o imbróglio institucional também contribuiu para inviabilizar na última década um trem rápido no trajeto Rio-São Paulo. Nesse meio tempo, os chineses exponenciaram suas conexões ferroviárias de alta velocidade, como a que interliga em menos de 5 horas os 1.300 km entre Pequim e Xangai em composição de alto luxo – tudo construído ao longo de apenas 39 meses. 

Fala-se muito na Ferrovia Transoceânica. Em obras desse porte, além da construção em si, o que em geral leva mais tempo é o estudo de viabilidade. Como diferentes estudos desta natureza já foram elaborados desde os anos 1970, a dinâmica de implementação da Ferrovia dependerá muito de qual esboço será utilizado como referência. 

Ambientalistas brasileiros já se movimentam contra o projeto. Hoje, no entanto, tecnologias ferroviárias mais avançadas são de pequeno impacto sobre o meio ambiente. País algum do mundo teve seu patrimônio ambiental seriamente ameaçado pela expansão da malha ferroviária. 

No Brasil, então, essa discussão carece de histórico relevante. Há menos quilômetros de extensão ferroviária em operação hoje no Brasil do que nos Estados Unidos  no início da Guerra Civil. Além disso, os líderes do projeto podem constituir fundos específicos a partir da operação lucrativa da linha de modo a que recursos sejam revertidos em prol da sustentabilidade.

Os impactos da Transoceânica podem ser muito positivos na diminuição do custo logístico embutido, sobretudo em commodities agrícolas e minerais. Aqui, para o produtor, a economia pode chegar a 40%, montante passível de ser reinvestido no aumento da produção ou mesmo no componente de maior valor agregado para o produto final. 

Quanto ao período logístico interno no Brasil, estudos mostram que, se alterarmos a composição de nossa pobre infraestrutura multimodal (hoje fortemente concentrada na rodovia) em favor do transporte ferroviário de cargas (mesmo o de baixa velocidade), o tempo dispendido entre o ponto de origem no interior do País até um porto oceânico exportador seria cortado pela metade.
Não se deve tampouco comparar, como fizeram alguns, a evolução do investimento estrutural chinês no Brasil com aquele que os chineses estão realizando na África. Ainda assim, naquele continente, com um quadro de diversidade institucional e de sociedade civil bem menos sofisticado que o Brasil, é patente a tensão "cooperação-conflito" que advém de uma maior participação da China como agente econômico local. 

Em síntese, apesar de uma maior participação da China como fonte de investimentos para o Brasil, não conseguiremos reproduzir o fenômeno dos megaprojetos implementados à velocidade da luz.

Argumenta-se que a eficiência tem muito que ver com violações de direitos humanos e exploração de mão-de-obra. Vale ressaltar que, embora seguramente continuem a existir, essas violações estão bem menos intensas hoje do que durante o período de grande arremetida chinesa baseado no modelo de nação-comerciante.  

Nesse grande intervalo que vai de 1978 (início das reformas implementadas por Deng Xiaoping) a 2013 (chegada de Xi Jinping à cúpula do poder chinês), houve sem dúvida uma grande administração artificial da remuneração dos fatores de produção, e particularmente do fator "trabalho", de modo a incrementar ainda mais a competitividade dos produtos chineses. Mas este é um fenômeno que já estancou. Hoje não há tanta diferença, por exemplo, no salário pago na manufatura em termos de homem-hora entre as economias mexicana e chinesa.  

O itinerário de Li Keqiang pela América do Sul também o leva a Colômbia, Peru e Chile. O que ele quer fazer lá? 

Num primeiro exame, vê-se que o interesse chinês nesses três países reproduz o padrão maior das relações China-América Latina. Por um lado, exportações de bens manufaturados chineses, com cada vez mais componentes de alta tecnologia, e, por outro, oferta assegurada por parte da América Latina à China de bens primários. 

Tais nações, no entanto, apresentam um desafio a mais para Pequim. Todas estão engajadas, junto com o México, na chamada "Aliança do Pacífico", bloco latino-americano orientado não às antigas teses de substituição de importações, mas à promoção de exportações. 

Dois deles (Peru e Chile), juntamente com México e outros países de Ásia e Oceania, estão na chamada Parceria para Comércio e Investimento do Pacífico (TPP), o que traz desafios geoeconômicos distintos de uma perspectiva de Pequim, que também deseja negociar uma grande área de cooperação econômica para o Pacífico, a ALCAP (Área de Livre Comércio da Ásia-Pacífico). 

Esta, ao menos da boca para fora, foi a grande iniciativa de Xi Jinping durante a reunião de cúpula da APEC (Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico) realizada na capital chinesa em novembro último. Com ela, somada ao marcado interesse na África e na América Latina, a China dá provas definitivas de que sua extroversão no mundo tem múltiplas faces.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Sabe como se diz 'soft power' em chinês?

Por Marcos Troyjo


No maior desfile militar realizado na Praça Vermelha desde os tempos de Staliin, um convidado estrangeiro chamava tanto a atenção quanto o atual inquilino do Kremlin.

Semana passada, ao comandar as comemorações dos 70 anos da vitória naquilo que os russos chamam de "Grande Guerra Patriótica", Putin tinha a seu lado o reluzente presidente chinês Xi Jinping. 

O mandatário russo certamente quis que se enxergasse na imagem o símbolo de uma nova ordem mundial "multipolar", onde Moscou e Pequim são protagonistas. No limite, o pensamento estratégico russo continua a supor, à semelhança do período czarista ou mesmo da etapa soviética, que poder (no sentido político-militar) precede e determina a esfera da riqueza e do prestígio. 

Os chineses nada têm contra o Kremlin atuar dessa maneira. Pequim vê numa Rússia geopoliticamente forte e ambiciosa mais uma frente com que os EUA precisam preocupar-se e despender extenuante esforço diplomático. Quanto mais sanções Washington e as capitais europeias impuserem a Moscou, mais oportunidades abrem-se para a China no acesso a recursos minerais e energéticos. Além disso, aumenta também a necessidade da China ser consultada prioritariamente pelos russos em qualquer tema da pujante massa territorial da Eurásia. 

A diplomacia chinesa ouve com a atenção e até reproduz o conceito de "nova ordem multipolar", tão caro aos russos. Pequim, no entanto, possui sua própria interpretação do que, de um ponto de vista realista e de seu interesse nacional, significa o termo "multipolaridade". A saber, um condomínio global em cujo núcleo, durante algum tempo, EUA e China conviverão como superpotências determinantes -- a primeira, acreditam os chineses, em decadência; a segunda, em ascensão.

Tal percepção, raramente vocalizada pela alta direção em Pequim, mas perceptível nas atitudes e visão de mundo da elite governamental e empresarial chinesa, representa um importante complemento ao planejamento estratégico do país. 

Até há pouco tempo, a liderança chinesa tinha um projeto para sua população: a rápida ascensão do PIB per capita mediante um modelo econômico que conjuga ênfase nas exportações e acúmulo de grande estoque de poupança e investimentos. 

Apresentava também clara concepção de qual deveria ser o papel das elites: conduzir a ascensão socioeconômica num ambiente de oxigênio democrático rarefeito, mas de vigorosa ênfase na estruturação da capacidade competitiva em termos econômicos, científicos e tecnológicos. 

A China igualmente sabia o que queria "do mundo": um panorama global em que o país não precisasse projetar seus valores. Para a China, alguém imitá-la é o mesmo que com ela competir. E, em paralelo, um quadro político-estratégico em que ela não teria de participar de ações militares externas em coalizões pontuais os mesmo sob os capacetes azuis da ONU -- desde que ela própria não fosse territorialmente importunada. 

Faltava, assim, o que a China queria "para o mundo". Essa dimensão de como a ordem global deve funcionar passa cada vez mais a integrar a caixa de ferramentas da diplomacia chinesa. Na medida em que os EUA se vêem oscilando entre o "hard power" (sua inegável proeminência militar) e seu "soft power" (seu desgastado discurso em prol de economia de mercado e democracia representativa), os chineses sabem muito bem onde está seu "nicho" na condição de co-integrante do "G2" ao lado dos EUA. Trata-se do "money power".

Putin sabe que, se as portas do Ocidente se fecharem, outras serão abertas por sua parceria com Pequim. A América Latina se consola por ter perdido o boom das commodities para acelerar reformas estruturais competitivas com empréstimos e investimentos chineses. A África supõe que seus imensos desafios de infraestrutura e industrialização podem ser superados com a cooperação chinesa. 

A criação de um fundo -- alimentado pelo Banco Industrial e Comercial da China (ICBC) -- com US$ 50 bilhões para investimentos em infraestrutura no Brasil a ser anunciada na visita que o premiê Li Keqiang faz ao país na semana que vem ilustra bem o ponto.

Em resumo, estes são os sinais captados por grande parte do mundo -- à exceção de EUA e Europa -- quando Pequim aumenta seu papel como parceira de comércio, empréstimos e investimentos e acelera a consolidação de novos veículos econômicos como o banco dos BRICS ou as muitas iniciativas de financiamento de infraestrutura na Ásia e na África.

Nesse quadro, a China desde Deng Xiaoping claramente adotou um estratégia "etapista". Antes de ser poderosa militarmente, Pequim buscou construir seu lugar ao sol privilegiando seu arsenal econômico. Os chineses estipularam que a geopolítica deve ser precedida pela geoeconomia. O mesmo se observa na busca de irradiar o prestígio de seus valores ético-políticos. 

Quer saber como se diz "soft power" em chinês? Basta entender a expressão "o poder do dinheiro".

sexta-feira, 24 de abril de 2015

E se a Apple fosse uma estatal?

Por Marcos Troyjo


Divulgação contábil e lançamento de um relógio multifuncional. Eventos desconexos marcam nestes dias o desempenho de gigantes corporativos no Brasil e nos EUA. Muito revelam da escala de valores e modelos de inserção global dos dois países. 

No caso brasileiro, apareceu o balanço auditado da Petrobras que dimensiona corrupção e má gestão. No caso americano, prepara-se a chegada do "Apple Watch", primeiro produto de tecnologia "vestível" para o qual a empresa montou a maior campanha de marketing da sua história.

Petrobras e Apple numa moldura comparativa parece despropositado. Nem tanto. Protagonistas em cada economia, ambas são estratégicas para os dois países. 

A primeira responde à tradicional noção dos brasileiros (e latino-americanos) de que seu futuro assenta-se em riquezas naturais, cuja gestão soberana cabe ao Estado. A segunda reside essencialmente no caos perene da inovação. 

Hoje o valor de mercado da Petrobras representa 3,5% do PIB brasileiro. Sua performance afeta toda a cadeia energético-industrial, da engenharia naval ao menor elo na rede de fornecedores. A empresa é o eixo da política de substituição de importações nos últimos 12 anos. 

Há, claro, muito mais no petróleo do que mero caráter de "commodity". A Petrobras é o maior investidor brasileiro em pesquisa & desenvolvimento. Detém valiosos ativos em nanotecnologia ou robótica. O Brasil ancora parte importante do futuro de sua educação na perspectiva da riqueza petrolífera. A Petrobras está no coração disso tudo.

Já a Apple equivale a 5% do PIB americano -- e 0,15% do produto global. Foi pioneira em compreender que o principal filão não estava nos enormes computadores mainframe. Direcionou a computação ao indivíduo. 

Reconfigurou o design para expandir limites entre funcionalidade e estilo. Desmaterializou a indústria da música com o iPod e o iTunes. Redefiniu telefonia e computadores de mão com o iPhone. Dividiu águas para a mídia jornalística, entretenimento e ensino com o iPad. Ultrapassou a fronteira entre hardware e software, implementando o "smartware".

Por importante que seja, o petróleo não é mais estruturante do futuro do que tecnologias da informação. Já se disse que um ataque realmente devastador nos EUA não deveria ser endereçado ao Pentágono, mas ao Vale do Silício.

Já imaginaram se o planejamento da Apple Store fosse entregue a apadrinhado de coalizão política que sustenta o titular da Casa Branca? 

E se a divisão de computação em nuvem coubesse à "reserva pessoal" de outro cacique de Washington? 

Ou se contratos com fornecedores independentes dos 300 mil novos aplicativos desenvolvidos para o Apple Watch fossem inflados de modo a fazer caixa para políticos?

Petrobras é a maior empresa brasileira. Apple, a maior dos EUA -- e do mundo. 

Tentador projetar como seria uma Petrobras libertada de ingerências políticas. 

Mais divertido ainda pensar no que aconteceria com a Apple se, dado seu caráter "estratégico", ela fosse uma estatal.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Superpotência energética?

Por Marcos Troyjo
 
  
No auge da "brasilmania", há apenas 5 anos, o país era visto como candidato à superpotência energética. Entusiasmo compreensível. Tesouros do pré-sal prenunciavam o Brasil rodando 6 milhões de barris/dia em 2022. Saltaríamos da 13ª para a 4ª posição dentre os maiores produtores mundiais de petróleo.
 
Ricas reservas de água convidam à hidroeletricidade. Pioneiro na energia alternativa, particularmente o biocombustível, o país conta motores flex em 8 de cada 10 automóveis. Imenso patrimônio eólico e fotovoltaico.
 
Hoje, o desempenho energético brasileiro decepciona. Como em tantas pontas da vida nacional, o problema não é potencial – mas gestão e estratégia.
 
Na última década o país teve toda condição de robustecer sua infraestrutura energética. O vento de expansão da demanda global por commodities soprava a favor. Também na energia, o Brasil não aproveitou "bons tempos para implementar boas políticas".
 
Critérios sazonais sempre afetam a todos. Deve haver, contudo, clara divisão entre meteorologia, administração "política" e segurança energética.
 
No âmbito dos Brics, conjuntura e estratégia em torno da energia se entrelaçam de forma desafiadora.
 
A Rússia ainda é a maior produtora de petróleo e gás. Isto não lhe posta problemas para abastecimento interno, embora tenha receita exportadora fortemente impactada pelo baixo preço internacional das commodities energéticas.
 
Os chineses trabalham cada vez mais por modalidades múltiplas de energia para o gigantesco parque industrial. "Clonaram" experiências brasileiras na construção de hidroelétricas. São atualmente os maiores importadores de petróleo do Oriente Médio. E também os maiores investidores mundiais em energia do vento e do sol.
 
Pequim e Moscou firmaram acordo de fornecimento de gás no ano passado de meio trilhão de dólares. Foi uma negociação arrastada por 10 anos – e concluída graças à necessidade russa de ampliar parcerias já que sofre pesadas sanções do Ocidente pela anexação da Crimeia.  
 
A Índia beneficia-se imensamente do petróleo barato – uma das razões da excitação que o país suscita nos mercados internacionais. O desconto na fatura energética ajudará a Índia a superar o crescimento chinês em termos percentuais já neste ano.
 
Num grande resumo, pode-se dizer que desde o fim da Segunda Guerra o mundo testemunhou quatro milagres econômicos: o reerguimento de Alemanha e Japão e a ascensão dramática de China e Coreia do Sul.
 
Todos esses exemplos contaram com políticas especiais de fornecimento e utilização de insumos energéticos. Todos tiveram na indústria a espinha dorsal de sua arremetida econômica.
 
Dá para concluir que política energética voltada à harmonização da capacidade internacional de competir é irmã-gêmea da industrialização. E exemplos de êxito dos últimos 70 anos mostram que industrialização vem de mãos dadas com crescimento econômico.
 
Na energia, barbeiragens de planejamento e execução impedem que nosso superpotencial nos converta numa superpotência.